quinta-feira, 17 de março de 2011

Artigo (Rudá Ricci) - Lulismo: como é hoje ou respondendo a Luiz Marques

O cientista político gaúcho Luiz Marques escreve um interessante artigo, intitulado “Lulismo: como será no futuro?” (publicado em http://www.sul21.com.br/ e site http://www.ptpoa.org.br/), comentando minha análise sobre este fenômeno político. Quem escreve e analisa sonha com esta possibilidade de reflexão.

O pior dos mundos, para um escritor, é o silêncio que se segue ao seu esforço. Luiz, por algum motivo, começa sua crítica comentando o pensamento conservador. Como se sabe, o conservadorismo é assim denominado porque procura preservar o status quo. Neste caso, o status quo brasileiro é o Estado brasileiro dirigido por quase duas décadas de gestões de tipo social-democrata.

PSDB e PT se revezaram – e se revezam – no poder, incluindo os embates estaduais e municipais. PMDB corre por fora, demonstrando que quantidade nem sempre define o poder político real, justamente porque o PMDB se amolda ao múltiplo relevo do país, mas não consegue construir um discurso nacional, muito menos um discurso hegemônico. Portanto, analisar ou criticar esses dois modelos de gestão, principalmente procurando revelar suas contradições ou equívocos nem de longe é um exercício conservador.

Mas voltemos ao texto de Luiz. Ainda na introdução do texto, retoma Edmund Burke. Interessante, um outro Burke, Peter Burke, escreveu um excelente texto a respeito do embate entre o pensamento do historiador e do sociólogo. Edmund teria destilado o ideário conservador. Mas Peter foi quem indicou esta dificuldade do referencial dos historiadores – leitura documental de longa duração – se articular com o referencial de sociólogos – marcado pela leitura das tendências de momento e ênfase no trato e construção de conceitos. A sociologia nasceu no início do século XIX, em seminários promovidos por Auguste Comte, justamente para explicar e entender aquele momento específico em que os costumes do antigo regime eram superados pela revolução francesa – marcada, segundo Comte, por uma filosofia negativista, que negava tudo e todos – o que teria criado um enorme turbilhão política e instabilidade social em seu país. Marx, também, tentou entender seu tempo a partir de amplos conceitos. O 18 Brumário de Luis Bonaparte é uma das melhores expressões deste esforço. Émile Durkheim, Pierre Bourdieu, Alain Touraine, a lista é imensa e corrobora as diferenças.

O pensamento crítico, um certo desencanto e a tentativa de compreender tendências sempre foi a marca da sociologia.

É verdade que a influência da leitura anglo-saxônica na ciência política brasileira alterou um pouco esta característica, mas entendo como uma derivação – esta, nitidamente conservadora – do DNA sociológico. O fato é que Luiz Marques utiliza esta digressão inicial para saltar para o que denomina de neoconservadorismo. Cita, corretamente, o Tea Party como sua expressão contemporânea. Mas, a partir daí, desliza teoricamente.

Porque indica o ataque ao Welfare State como um possível sintoma do neocoservadorismo. Seu texto não é claro a respeito, mas aproxima-se desta linha de pensamento. E é aí que está o núcleo central do erro de sua argumentação. Há uma farta literatura de esquerda a respeito dos erros do Welfare State, que criou uma imensa burocracia de tutela política e que destruiu o movimento sindical europeu como instrumento de lutas e conquistas sociais mais avançadas. O Welfare State se espelhou em iniciativas conservadoras, a começar pelas inovações de Otto Von Bismarck, que não foi um exemplo de gestão progressista. Bismarck atacou duramente os movimentos sociais e os colocou na ilegalidade. Mesmo assim, foi pragmático e instituiu a lei de acidentes de trabalho e seguro doença, reconheceu sindicatos. Dizia Vianinha: “nem tudo que é novo é revolucionário”, uma maneira tupiniquim de citar a famosa frase d´O Leopardo, também lembrada por Luiz.

Feitas as voltas, caímos no lulismo. Luiz diz que “para alguns analistas, o lulismo remeteria a uma matriz gerencial de Estado”. Ora, o único autor que afirma isto sou eu. E Luiz sabe disto, porque continua me citando quase literalmente a partir das matrizes discursivas (aqui, utilizo claramente o conceito empregado por Eder Sader, com quem trabalhei) do lulismo. Logo à frente, finalmente, cita meu livro sobre o lulismo. Não é nenhum grave problema, mas a diferença tem endereço mais claro do que parece no início da crítica. O problema é que em seguida me emparelha às críticas de André Singer e Chico de Oliveira, autores cujos argumentos não compartilho e que indiquei minhas diferenças no meu livro sobre lulismo (capítulo 3). Mas admito que se trata de um mero detalhe. Vamos ao que interessa.

Luiz sugere a relativização do conceito revolução-restauração para entender o lulismo. Contudo, o motivo para a relativização não fica claro. Cita a democratização do Estado como objetivo perseguido pelo PT desde seu início. Ora, mas a tese central que defendo é que o lulismo rompe claramente com o petismo.
 Assim, a crítica adota sinais trocados. Analisa a intenção petista pela prática lulista. A matriz da burocracia partidária que cito em meu livro não é genérica, mas aquela advinda de um grupo político específico no interior do PT. Darei nome aos bois: trata-se da aliança forjada por José Dirceu que atraiu parte da cúpula da organização trotskista Liberdade e Luta para o núcleo duro do PT paulista, em meados da década de 1980. No encontro estadual paulista do PT de 1986, esta articulação – e suas intenções e altas ambições políticas – já estavam bem estampadas. A proposta original do PT – focada na organização de base e no ataque frontal à burocratização partidária – resistiu até as eleições nacionais de 1989. Mas capitulou a partir daí. Todo processo meticuloso de seminários e consultas regionais foi substituída, já na campanha eleitoral de 1994 por mera apresentação das propostas às lideranças sociais espalhadas pelo país. Há farta documentação a respeito. Há registros das tensões, durante a campanha, com quebradeiras de côco de babaçu, no Pará, ou lideranças sócias do Vale de Jequitinhonha, em Minas Gerais. Para citar duas ilustrações.

Luiz salta e critica a possibilidade de emergência de um movimento neoconservador no Brasil. Toma a tendência por exercício de futurologia. Quais são os indicadores que sugerem esta possibilidade? A ascensão de uma gama imensa de pobres à condição de classe média baixa (Classe C) carregando um ideário muito conservador e a reação fundamentalista do final do primeiro turno das eleições nacionais do ano passado. Todas pesquisas disponíveis revelam a recusa, por parte desta nova classe média, de qualquer ação societária (são comunitaristas, pior, fechados em sua família) de cunho democrático. Pesquisas que coordenei em vários centros urbanos nos últimos anos corroboram esta constatação. Até mesmo uma pesquisa que realizei para a Arquidiocese de Belo Horizonte sobre o perfil dos católicos indicava o que denominamos de “religiosidade privada”, ou seja, a instrumentalização da fé para efeito de ascensão social pessoal e de sua família. Desconhecer este risco político é desconsiderar um amplo inventário social do Brasil contemporâneo, realizado por institutos de pesquisa, ONGs e universidades. Mas nada que indique que seja um fatalismo. Eu mesmo considerei, em diversas entrevistas, que os filhos desta nova classe C já terão, possivelmente, adotado o ideário da classe média tradicional. Mas o problema que procuro destacar é o momento atual e a falta de sustentabilidade desta ascensão social. O lulismo, profundamente pragmático e conciliador, não alterou a prioridade da tributação sobre o consumo, absolutamente injusta socialmente.

Assim, quem financia esta roda virtuosa é a classe média tradicional. A transferência de renda, em outras palavras, se faz entre assalariados. Onde estaria a política de cunho progressista? Recentemente, Evilásio Salvador, da UnB, concedeu entrevista (Folha de SPaulo, 4/7/2011) onde retoma este grave problema.
Questiona quem paga a conta desta política de tiro curto. Mas não só. O lulismo desmontou todas iniciativas – ironicamente buscadas por parte dos petistas que estiveram nos primeiros dois anos no governo Lula – de ampliação do controle social sobre o governo federal. Implantou e desmontou as audiências públicas para discutir o Plano Plurianual; desmontou a criação de uma rede descentralizada de acompanhamento do orçamento federal, dificultou a transparência e acesso de informações a dados públicos, transferiu o controle social do Fome Zero para o controle de prefeitos (o que motivou o pedido de demissão de Frei Betto e Ivo Poletto, registrado em seus livros), não transformou as deliberações das conferências nacionais em leis ou orçamento (com exceção de apenas duas) e assim por diante.

O epílogo desta história ainda não foi construído. Aliás, ao contrário do pensamento conservador, raramente a história constrói epílogos. O progressismo é um desejo, não uma certeza. Mesmo porque, confundir desejo com história seria exercício de escatologia. Como se um demiurgo pairasse sobre nossas cabeças. Ao contrário, a história é recheada de possibilidades, algumas identificadas com nossos desejos, outras, muito distantes. O papel do cientista político é saber se afastar desta confusão. A militância científica assume riscos, como o de sugerir tendências, mas não o risco de ser claque. A claque oscila entre a depressão e a exitação, porque marcada pela idolatria. Se arrisca a falar no vazio e cair na depressão. Nada mais distante dos riscos que cientistas assumem humildemente. E que se submetem, à luz do dia, ao debate e ao desencadear da dinâmica social.

Sociólogo, Doutor em Ciências Sociais, membro do Fórum Brasil do Orçamento

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