segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Ficha limpa na gaveta, suja nas eleições


Ficha limpa na gaveta, suja nas eleições

Dom Tomás Balduino1 (FSP, 14/02/2010, p. A3.)

Um milhão e quinhentas mil assinaturas entregues a Michel Temer (PMDB-SP), presidente da Câmara dos Deputados, em 29 de setembro de 2009, foram o fruto de uma bela e esperançosa campanha nacional visando apresentar um projeto de lei exigindo ficha limpa dos candidatos a cargos eleitorais.

Um evento histórico da maior importância para a democracia brasileira.

Houve destacada participação do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), da presidência da CNBB, dom Geraldo Lyrio e dom Dimas Barbosa, insistindo, na coletiva do dia 11 de dezembro, na agilidade da aprovação do projeto para barrar a corrupção na política.

A magnitude do acontecido mereceria uma comemoração das mais festivas. O que se viu, entretanto, depois da entrega oficial, foi um Congresso silencioso, reticente, triste…

O deputado Michel Temer, desde o primeiro momento, se entrincheirou no adiamento da pauta do projeto para fevereiro de 2010, alegando agenda cheia, recesso parlamentar e outras prioridades. Dizia estar dialogando com os líderes para que esse projeto de lei não corresse o risco de “não ser aprovado”.

Passado um mês de sua entrega, não havia relator designado e entrou no inexorável ritmo do passo lento daquela pesada máquina burocrática. Uma decepção! A ficha limpa foi para a gaveta de Michel Temer.

Quanto aos demais deputados, não se tem registro de posicionamento público, a não ser o do deputado José Genoino (PT-SP), que subiu à tribuna, em 4 de novembro, para criticá-lo.

Para Genoino, a proposta é “inconstitucional” e “autoritária”. É preciso recordar, porém, que ele é réu no processo do mensalão que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF).

Seu discurso recebeu apoio de quatro deputados, entre eles o de Geraldo Pudim (PR-RJ), que já foi alvo de questionamentos na Justiça, e Ernandes Amorim (PTB-RO), que admitiu responder a processos e inquéritos judiciais.

Genoino se posiciona pela liberação das fichas sujas nas eleições, pela manutenção da impunidade dos que acorrem à campanha eleitoral em busca de um cargo público, para lhes garantir fórum especial e blindá-los contra os instrumentos comuns e normais da Justiça.

Vários políticos se precipitam em busca da eleição logo após terem cometido crimes, até de homicídio.

Conseguem multiplicar recursos financeiros e, consequentemente, o número suficiente de eleitores para elegê-los.

Agora, na semana passada, depois de quatro meses de espera na Câmara, os líderes partidários decidiram criar uma comissão para, simplesmente, modificar o texto da proposta porque, segundo eles, haveria dificuldades de aprovar o veto à candidatura de políticos com condenação em primeira instância na Justiça.

A gente se pergunta: a quem, afinal, esse Congresso representa? Qual a relação que esses nobres deputados têm com a sociedade civil organizada para que uma mobilização popular séria, prevista na Constituição, como a que ofereceu à nação um número tão expressivo de assinaturas, acabe, na Câmara, num leviano joguete de interesses escusos de senhores votando em causa própria?

Está de parabéns dom Dimas, secretário-geral da CNBB, que mais uma vez se posicionou com o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral: “Não se tolera mais adiamento do projeto. O movimento topa dialogar com quem de direito no Congresso. Não aceita, porém, alterações redacionais que venham desfigurar os princípios que norteiam a iniciativa”.

A ficha limpa é um passo de suma importância para salvar a democracia e para garantir a credibilidade do processo eleitoral. Mas não é tudo, pois uma análise mais profunda do nosso processo eleitoral nos leva à melancólica conclusão de que ele é estruturalmente corrupto.

Vou citar, para concluir, uma autoridade no assunto, João Heliofar de Jesus Villar: “Como procurador regional eleitoral no Rio Grande do Sul, tive a oportunidade de atuar em quatro eleições e refletir demoradamente sobre essa loucura que é o processo das eleições no Brasil. Quem trabalha na fiscalização dos pleitos sabe que o sistema está desenhado para não funcionar. Não se trata de fiscalização ineficiente e sim de fiscalização impossível. (…) Há um consenso silencioso na classe política de que o caixa dois é uma necessidade inafastável.” (“Corrupção: o ovo da serpente”, “Tendências/Debates”, 4/1).

Antes de qualquer reforma política entregue a esses mesmos senhores, emerge, pois, a nossa inarredável responsabilidade como sociedade civil organizada.


1 Dom Tomás Balduino, 87, mestre em teologia e pós-graduado em antropologia e linguística, é bispo emérito da cidade de Goiás e conselheiro permanente da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

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